A MANGUEIRA E O DESFILE DE CARNAVAL COM JESUS CRISTO

Conceituadíssima escola de samba do Rio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira elegeu como tema para o carnaval de 2020 o enredo “A Verdade vos Fará Livre”, em que narra a trajetória de ninguém menos do que Jesus Cristo.
Enfrentar a dificuldade de tratar de tema tão grave como a vida e obra de Jesus em um momento de festa tão mundana como o carnaval já é, por si, um ato de imensa coragem, um verdadeiro desafio.
Fã incondicional do carnaval e cristão convicto, apesar dos pecados que me caracterizam, não resisti à salutar tentação de assistir ao desfile da Verde e Rosa, que se encontrava acessível no YouTube, feito a partir da transmissão da Rede Globo, condensando em cerca de 45 minutos o período de uma hora que a Escola passou em seu desfile no sambódromo.
Além do sentimento de forte e sincera emoção, o que mais me fez admirar o desfile da Mangueira foi a atitude respeitosa com que o tema foi tratado, sem abrir mão de uma reflexão mil vezes vigorosa e ousada, porém sempre dentro dos limites de crítica que um tema religioso merece.
Sem baixaria, sem nudez, – pois até a ala das passistas musas da comunidade, que tradicionalmente se apresente sambando em minúsculos biquínis, dessa vez veio com uma espécie de maiô, bem mais composto – sem afronta, sem desrespeito, a Mangueira nos levou a uma reflexão extremamente oportuna, ao propor vermos jesus como negro, como mulher, como LGBT, como jovem excluído residente na periferia, enfim, como rejeitado pelos padrões tradicionais e dominantes de nossa sociedade.
Sabemos que Jesus não era negro, nem mulher, nem LGBT, assim como sabemos que, se não era rico, também não era escravo, em uma sociedade judaica, então dominada pelos romanos, em que a escravidão era permitida e se constituía como uma das bases econômicas, naquele momento histórico.
Trazer Jesus de sua época para ambientá-lo nos dias de hoje nos proporcionou a reflexão de que, se encarnasse em nossos dias, entre nós, Jesus poderia ser, sim, um jovem de descendência negra ou indígena, morador dos morros e periferias de nossas cidades.
Jesus também, nos dias de hoje, poderia ter nascido em um corpo feminino, algo que tornaria virtualmente impossível sua missão em uma sociedade machista e intolerante como a dos israelitas, há dois mil anos atrás.
De igual forma, a proposta de um Jesus LGBT nos faz ver que a opção sexual de Jesus seria um problema dele, e não nosso, cabendo a nós unicamente respeitar suas escolhas, assim como respeitamos o fato dele ter permanecido solteiro, sem relacionar-se com nenhuma mulher e sem gerar filhos.
Igualmente oportuna foi a denúncia das execuções feitas pelo Estado contra aqueles que a sociedade, ou os poderosos, consideram indesejáveis, não mais com as crucificações públicas, mas com os tiros de arma de fogo com que parte de nossos jovens, quase sempre negros e pobres, são assassinados, ao invés de levados ao sistema prisional após um julgamento justo, que é o que se deseja para quem comete um crime, em uma sociedade realmente civilizada.
Me encontrei naquele Jesus diverso, negro, periférico, LGBT, pobre, tratado como inimigo do Estado e agredido até a morte por conta disso. Me vi naquele Jesus excluído porque guardo a plena convicção de que foi também por pessoas como essas, e como eu e você, que ele entregou sua vida em sacrifício supremo.
Viva Jesus e a maravilhosa reflexão proposta pela Mangueira, que nos traz Cristo cada vez mais vivo, cada vez mais nosso irmão e mestre, cada vez mais perto de nós.
Julio Cezar de Oliveira Gomes é graduado em História e em Direito pela UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz.
Publicado no Blog do Gusmão em 28/02/2020.

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